Carta aberta ao setor de transporte: RESPEITEM a profissão de motorista e digam NÃO ao jeitinho

A regulamentação da profissão e a extinção da carta-frete são conquistas que garantem dignidade não só aos motoristas mas, também, aos seus filhos e famílias

O ano de 2012 ficará marcado por dois fatos de grande relevância para o transporte rodoviário de cargas no Brasil:

  • A proibição definitiva do uso da carta-frete;
  • A regulamentação da profissão de motorista.

Falemos um pouco desses dois itens, para os leitores que ainda não estão familiarizados. A carta-frete era um instrumento informal para o pagamento de fretes a autônomos, caminhoneiros e carreteiros. Após a realização do transporte, o profissional recebia uma carta atestando um determinado valor e poderia descontá-la/recebê-la em determinados estabelecimentos que se dispunham a aceitá-la. Notadamente, postos de gasolina e outros estabelecimentos prestadores de serviços a essa categoria profissional. O uso da carta-frete, porém, trazia certos prejuízos ao caminhoneiro: o combustível adquirido nos postos era, muitas vezes, vendido com ágio (preço superior ao cobrado aos demais clientes) e seu caráter de informalidade era gerador de contratempos legais ao profissional que a recebia – dificuldades para comprovação de renda e correto pagamentos de impostos, por exemplo. Já a regulamentação da profissão de motorista veio com a aprovação de uma lei que determinou regras e rotinas para realização do trabalho na boleia. Embora, como todo trabalhador brasileiro, o caminhoneiro tivesse o amparo da CLT, havia a necessidade de um mecanismo legal que regulasse tudo aquilo que é particular a essa profissão. Em outras palavras: tempo de trabalho ao volante (considerando o caráter cansativo e penoso da profissão); períodos de descanso (para evitar jornadas de trabalho excessivas e o risco do sono ao dirigir); seguro obrigatório, pago pelo empregador (para proteção do profissional e sua família, dados os riscos de seu trabalho); etc.

Pois bem, após intensas negociações e debates que envolveram entidades representativas dos empregadores, trabalhadores e órgãos governamentais, chegamos à extinção da carta-frete e a regulamentação da profissão de motorista. O Portal Transporte Seguro saúda essas duas iniciativas com todo entusiasmo, pois considera que são marcos para que o trabalho em nossas estradas ocorra de forma minimamente civilizada. Também gostaríamos de elogiar – ainda que possamos fazer algumas críticas pontuais – o papel desempenhado de forma democrática e republicana pela Confederação Nacional do Transporte, a Nova Central Sindical dos Trabalhadores e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres, além de todos os deputados e senadores que contribuíram para melhorar a redação final da lei que estabelece a profissão de motorista.

Ao longo das últimas semanas, o Portal Transporte Seguro recebeu uma série de comentários, e-mails e telefonemas motivados, justamente, por esses dois fatos. Transportadores com dúvidas, autônomos questionando quais seriam seus direitos e deveres, questões relativas ao direito de aposentadoria, etc. Muitos profissionais interessados em compreender a lei e aplicá-la de forma justa, sem desrespeitar aquilo que determina seu texto. No entanto, chamou nossa atenção a grande quantidade de participações de pessoas que desejavam reclamar dos efeitos dessas iniciativas. Ainda pior: vários dos comentários e questionamentos nos levaram a concluir que não havia uma crítica concreta ao que foi aprovado mas, antes, uma defesa calorosa do “jeitinho”.

Alguns elementos levantados:

  • Com relação à jornada de trabalho, foram muitas as reclamações que expunham o seguinte: “se eu só preciso de mais 2 horas para chegar ao meu destino, não quero parar e descansar” ou “se o meu motorista está quase chegando, por que parar e retomar a direção só no dia seguinte?”
  • Os intervalos também foram muito citados: “por que ficar parando para descansar, durante a viagem, se o motorista pode ‘tocar’ direto e chegar antes?”
  • Ou, então, quanto à carta-frete, ouvimos muito sobre sua “praticidade” e a burocracia de outros modos de pagamento – notadamente, aqueles que respeitam a lei e o recolhimento de impostos.

Certas análises dão conta de que estamos à beira de um apocalipse no universo do transporte rodoviário de cargas. A considerar o que tem sido dito na imprensa e em comentários colhidos na internet, os preços dos fretes irão disparar, várias transportadoras vão quebrar, outras perderão suas margens de lucro com a contratação de novos motoristas, o fim da carta-frete trará custos administrativos…

Devemos fazer uma pergunta de fundamental importância: devemos deixar tudo como estava, sem leis que regulamentem o setor de transporte, ou devemos encarar o desafio da profissionalização?

Essa pergunta fica ainda mais importante se levarmos em consideração outros elementos já discutidos pelo Portal Transporte Seguro e que também terão impactos no setor de transporte. O governo federal tem investido fortemente em mecanismos de fiscalização e combate à sonegação no setor. Isso fica muito evidente na adoção do Conhecimento de Transporte Eletrônico (CT-e) e no Sistema Público de Escrituração Digital (SPED). De forma objetiva: as transportadoras que não estão com sua contabilidade em dia deverão se esforçar para garantir o correto pagamento de suas pendências e a reorganização de sua administração.

Voltemos ao título deste texto: por que dizer NÃO ao jeitinho?

  • Porque é um direito de todo trabalhador ter uma jornada civilizada de trabalho. E agora os motoristas profissionais têm esse direito reafirmado em lei;
  • Porque todos os trabalhadores devem receber seus salários através de meios legais. O que significa dizer não ao “jeitinho” da carta-frete e garantir o direito à comprovação de renda e a obediência ao dever de pagar corretamente seus impostos;
  • Porque aquelas empresas que estabeleceram suas margens de lucro sobre a exploração de seus funcionários devem rever suas práticas administrativas. É inconcebível, em 2012, que um motorista receba uma carga no Ceará e ouça de seu empregador que ela “precisa estar em São Paulo amanhã”;
  • Porque não é com gambiarras que vamos tornar a logística e o transporte nacionais mais competitivos. Os motoristas, após anos de lutas, com o apoio de sindicatos e associações, representantes políticos e até entidades patronais, conseguiram o reconhecimento de sua profissão. Se o setor se sente pouco prestigiado por governos, sonegar ou explorar não é a solução. Solução, nesse caso, significa organização. Procure seu deputado, seu sindicato, sua associação e reclame, organize, proteste. Ora, se o imposto é alto, não sonegue, exija que ele seja reduzido ou extinto.

Finalmente, fica nosso recado aos trabalhadores do setor. Após tantas lutas pela valorização daqueles que trabalham na boleia de um caminhão, não é possível sucumbir aos velhos hábitos e práticas. Uma jornada digna significa maior tempo de descanso, mais saúde e menor risco de acidentes. Você não acha que um motorista de bitrem com sono representa um risco para si mesmo, para todos os demais usuários de uma rodovia e para a carga que transporta? É inadmissível trocar horas de sono e descanso por uma ilusão de produtividade. E vamos repetir: solução, nesse caso, significa organização. Uma das falhas da lei que regulamenta a profissão de motorista reside no veto da presidenta Dilma Rousseff ao artigo que obrigava as empresas concessionárias de rodovias privatizadas a construir pontos de parada e descanso a cada 200 quilômetros. A desculpa – ridícula – utilizada dizia respeito ao fato disso não estar previsto em contrato, poder resultar em aumento de pedágios… Acreditamos que essa deve ser a nova bandeira de luta dos motoristas: a construção desse espaços dignos para o descanso e repouso em nossas estradas. Afinal, o caminhoneiro não irá parar, com sua carga, no meio do mato, para dormir. Procure sua entidade, seu sindicato, sua associação, o Ministério Público do Trabalho e pressione o governo a rever esse equívoco.

E chega de jeitinho no transporte rodoviário de cargas!

 

DATA

10 julho 2012

FONTE

Transporte Seguro