Aprender com Saly

“E no meu caminho, o tempo é cada vez menor…

Preciso de ajuda! Por favor me acuda!

Eu vivo muito só…”

Roberto Carlos, As Curvas da Estrada de Santos

Em Assembleia Geral, a Organização das Nações Unidas estabeleceu como “Década de Ação para a Segurança Viária” o período que vai de 2011 a 2020. Por ano, no mundo, hoje morrem um milhão e trezentos mil pessoas e o Brasil é responsável por mais de 4,5% deste número. O objetivo é reduzir as mortes no trânsito em cinquenta por cento.

Em 2010, as companhias de seguros indenizaram 51 mil sinistros de morte e 152 mil sinistros de invalidez permanente, que passaram, respectivamente, a 58 e 240 mil, em 2011. Minas Gerais é responsável por 10,6% do número de mortes ocorridas no País. No Estado, em 2011, foram registrados 51.911 ocorrências em estradas – entre atropelamentos e colisões. Nas áreas urbanas a situação não é diferente. Só em Belo Horizonte foram registradas 82.329 ocorrências – uma a cada seis minutos.

No dia três de outubro do ano passado, quando a noite caia nas terras do Rio Bom, Paracatú, um veículo novo e em boas condições, com airbag, foi abarroado por outro que derrapava. Na colisão foram envolvidos cinco veículos.

Uma das vítimas, de nome Saly, que viajava a trabalho, no banco de trás e usava cinto de segurança, não resistiu aos ferimentos e perdeu a vida a caminho de um hospital. Nos muitos que a queriam e admiravam ficou a dor e uma memória ardente. O sorriso, o desprendimento e sua dedicação ao próximo agora povoam os sonhos bons e ruins.

A filha, adolescente há pouco, permanece distante e seus olhos, sem faíscas, buscam uma luz que possa iluminar o pesadelo. A alegria octogenária da mãe, apenas entrecortada pelos sobressaltos típicos de uma vida intensa, hoje mora longe e não acorda mais com ela – para vivê-la exige estímulos permanentes. Seu marido, se antes inseguro, vive o degredo dos sem-lugar. Na mesa de domingo, os irmãos, parentes e amigos velam uma cadeira fantasma.

Não há o que dizer a ninguém, pelo menos que se saiba. Também não há o que falar do silêncio. Não há que se exigir conformidade na morada da perda e da indignação.

No caso citado, ao que tudo indica, o acontecido não passou de uma fatalidade, de um verdadeiro acidente. Contudo, a imensa maioria das ocorrências nas estradas e cidades pode ser evitada – portanto, não merece ser taxada de mero acidente.

Cabe às pessoas, assumirem as suas responsabilidades e se mobilizarem para dar um basta neste genocídio, aos governantes agir de modo a reduzir as situações de risco e ao estado garantir a segurança e punir os infratores.

Parecia ser este o sentido do Pacto Nacional pela Redução de Acidentes, lembrado por importantes dirigentes políticos, a exemplo da Presidente Dilma, quando da Semana Nacional do Trânsito deste ano, comemorada, se há o que comemorar, de dezoito a vinte e cinco de setembro.

Mas para desespero de todos, as três esferas de governo – federal, estadual e municipal – vem optando por um caminho oposto. Apesar dos discursos consternados a cada nova tragédia; as medidas político-práticas adotadas apontam para a conivência com a carnificina das estradas e das ruas. Senão vejamos:

–      Depois de 25 anos de luta e espera, no mês de abril, a Presidência da República sancionou a Lei 12.619 que dispõe sobre o exercício da profissão de motorista. O projeto originário, aprovado integralmente pelo Parlamento, é fruto do diálogo entre as representações dos empresários e dos trabalhadores – mas, mesmo assim, recebeu vetos importantes do Executivo.

A nova lei garantiu direitos elementares aos trabalhadores e pretendeu proteger a sociedade de abusos. Assegurou, por exemplo, aos motoristas que transportam cargas e passageiros pelas estradas uma jornada de trabalho máxima e períodos mínimos de descanso e repouso. Um dos principais objetivos e efeitos da lei é a diminuição dos acidentes causados por profissionais exaustos.

Todavia, cedendo às pressões e ao locaute iniciado por parte do empresariado – ligada à distribuição de combustíveis, ao agronegócio e a cooperativas –, menos de cinco meses após a sanção; o Governo Federal – através de resolução do CONTRAN – adiou a aplicação da lei e suspendeu a fiscalização da jornada de trabalho máxima nas viagens de longa distância nas rodovias brasileiras.

A esperança das estradas serem ocupadas por motoristas em condições físicas e psicológicas mais apropriadas capotou antes da primeira curva.

–     Um dos pontos que ajudam na melhoria das condições dos veículos que trafegam são as vistorias, os licenciamentos e as fiscalizações. De acordo com o Detran-MG – 22,7% dos 7,4 milhões de veículos registrados no Estado de Minas não tem licenciamento. Só um Belo Horizonte mais de um quinto da frota circula sem ter a devida licença.

Como se sabe, em qualquer tipo de automotor, quanto mais velho maior o risco de falhas. Na elaboração de qualquer índice de deterioração, a idade é o principal quesito. Todos os pareceres técnicos do Departamento de Estradas de Rodagem apontam neste sentido. Para João Afonso Baeta, Diretor de Fiscalização do DER-MG, “a idade máxima admissível é de quinze anos, qualquer adoção a partir desta idade, de certa forma, vai contra a segurança.”

Segundo o DER existem, hoje, oito mil veículos regulares com idade média de 4,8 anos. Quinze mil de fretamento com idade média de seis e sete anos e outros vinte mil com idade entre dezesseis e dezessete anos – ou seja, quase a metade da frota tem idade acima da indicada. Não por acaso, são frequentes ocorrências envolvendo ônibus fretados e clandestinos com mais de quinze anos de fabricação.

Os decretos estaduais 44.035, de 2005, e 45.521, de 2010, previam a retirada de circulação, em janeiro de 2013, de todo “veículo automotor de transporte coletivo de passageiros” que prestasse serviço por meio de aluguel e tivesse mais que o limite de segurança – quinze anos anos de fabricação.

No entanto, o Governo Anastasia revogou os decretos e permitiu a circulação de veículos com até dezoito no transporte intermunicipal. Não satisfeito, ao saber da notícia, Nivaldo Soares Júnior, presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de Turismo e Fretamento da Região Metropolitana de BH – Sindeturf,  informou que vai “brigar pela extensão dos limites”. O Sindicato foi o responsável por manifestação na Cidade Administrativa , diga-se de passagem permitida, que contou com a presença de 160 donos de ônibus, no último mês de agosto.

Desta vez, a esperança de que nossas estradas fossem ocupadas por veículos em condições de uso rolaram barranco abaixo.

–     A adoção de novas tecnologias, como as catracas eletrônicas, ou novos sistemas de transporte, tem servido de desculpas para a retirada de direito dos trabalhadores e aumentar a exploração sobre o trabalho. E, de tabela, colocam a população em situação de mais risco. É o que se assiste na eliminação das funções de cobradores e agentes de bordos em ônibus urbanos e interurbanos.

Em Belo Horizonte, a Emenda substitutiva nº 1 do Projeto de Lei 2.444, sancionada, recentemente, pelo Prefeito, retira os cobradores dos ônibus noturnos e daqueles que circulam aos domingos e feriados. O sentido geral, a longo prazo, é acabar definitivamente com a figura do cobrador, como já ocorreu em outras cidades.

Não é nada fácil garantir a vida e o bem estar de dezenas de pessoas mantendo atenção num trânsito cada vez mais caótico e violento, promovendo o embarque e o desembarque, enfrentando pistas de rolamentos e sinalizações precárias e veículos que nem sempre estão em melhores condições de uso – tudo isto respeitando um quadro de horário desumano. É preciso lembrar ainda os altos índices de poluição, ruído, temperatura, vibrações e movimentos repetitivos e as altas cargas de trabalho com pouco tempo de descanso.

Com as novas atribuições de cobrança e atendimento aos passageiros, as condições de exercício da profissão de motorista mudam para pior. Os profissionais tem uma sobrecarga de trabalho, veem aumentadas as responsabilidades, sentem o aprofundamento das condições de stress, sabem do comprometimento de sua atenção no trânsito e percebem a elevação o patamar de risco.

Aqui, os interesses econômicos dos empresários do transporte bate de frente com os motoristas e passageiros.

É notável como os desdobramentos das leis contribuem para o aumento de sinistros envolvendo caminhões, ônibus, motos e outros veículos automotores. O descaso dos governos com a população, deixa claro que as vítimas do trânsito não podem mais ser depositados, exclusivamente, no colo de motoristas irresponsáveis, pouco preparados ou inexperientes.

A realidade é que o fenômeno “acidente” vem abandonando a condição de acontecimento casual, fortuito ou inesperado. Está passando a transitar no âmbito da antevisão, da percepção da antecedência e caminham, a passos largos, para habitar o reino dos fatos planejados ou deliberadamente executados. O que fazer?

Um caminho é usar o exemplo de minha irmã, Saly Terezinha, e de sua vida dedicada às pessoas, para exigir dos governantes o fim de suas próprias irresponsabilidades e que passem a responder pelas atrocidades que vem patrocinando.

Belo Horizonte, janeiro de 2013

Sávio Bones – Assessor do Dep. Celinho/MG

svbones@yahoo.com

DATA

16 Janeiro 2013